dezembro 02, 2015

boas leituras (edição segunda)


estamos diante de três leituras postas em três longínquos extremos: num, a crueza do relato de uma vida desvirtuada que está agora por um fio; noutro, toda paixão de um apaixonado pela escrita em palavras tão simples e inspiradoras; e por fim, uma história agridoce sobre o amor.

como sempre, o boas leituras são breves comentários de leituras sobre as quais sou incapaz de escrever mais do que dois parágrafos. a cada postagem, notas de três boas leituras (mas não entenda ‘boas’ como um ponto inferior na escala hierárquica dos adjetivos, vindo logo abaixo de ótimo. não.).

ovelha: memórias de um pastor gay, de gustavo magnani

ovelha conta sua história de forma agressiva. e já começa com um inesperado soco no estômago. “eu nasci veado. amém". mas o perdoe, “é a falta de experiência”. basicamente, o livro é sobre um pastor gay que, perto da morte, narra suas memórias, falando diretamente com deus, sem pudor algum e de forma tão crua. ele conta seus primeiros relacionamentos com homens, sua relação com a esposa de mentira, os filhos e, principalmente, sua Mãe (assim, com letra maiúscula. e deus com minúscula.).

é visível a influência de garcía márquez e drummond, e magnani não o faz de qualquer forma: ele consegue fazer bom uso dos dois grandiosos estilos de escrita, conferindo certa singularidade à sua própria narrativa. o moço faz com que você se sinta sentado ao lado de ovelha enquanto ele, em sua cama de hospital, lhe confessa tudo, olhando no fundo dos seus olhos. porque as palavras deste narrador são como o olhar intenso e perturbador de quem faz uma confissão nunca antes esperada.

ovelha: memórias de um pastor gay é, talvez, a melhor leitura do ano, especialmente por me ter arrancado do meu lugar de conforto sem sequer pedir licença. não temo em dizer que todo fanático religioso (os silas malafaias, os marcos felicianos, os eduardos cunhas...) deveria ser agraciado com uma cópia desta obra prima pós-moderna.

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Eu nasci veado. Amém.
Perdão, comecei agressivo demais, senhor. É a falta de experiência. A mão suada, de tantas punhetas, segura outro objeto em riste, a caneta; não tão habituada à minha textura, ela teima em escorregar nas palavras e desviar os pensamentos. Sim, gosto de pau, de pelo, de suor, de porra. Nasci veado e morri veado. Não, não estou morto. Xô, Brás Cubas. O coração ainda bate, mas me sinto como se estivesse enterrado. Nasci enterrado. Nasci evangélico. Não nasci pastor, mas estava escrito, segundo o bondoso destino de deus...
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ovelha: memórias de um pastor gay
gustavo magnani
geração editorial
dois mil e quinze
 (“a carreira política despencaria, seu eleitorado formado exclusivamente por evangélicos em busca do direito de tirar o direito dos outros seria desintegrado” [p. 172] / “... com tanta tristeza no mundo, com tanta morte, maldade, por que deus se incomodaria com quem o gay se envolve? a bíblia prestou serviços sociais; ela deve ser contextualizada em sua época. suas leis são assassinas! são revoltantes! ‘onde está o deus de amor?’, pergunta o irmão que lê o antigo testamento” [p. 225])

o zen e a arte da escrita, de ray bradbury

bradbury é, com quase toda certeza, um dos autores mais inspiradores dos quais tive o imenso prazer de conhecer. entre fahrenheit 451 e licor de dente-de-leão existe uma linha tênue: ambos são duas fontes de inspiração, apesar de serem de gêneros completamente diferentes; um, sci-fi; outro, infanto-juvenil. e talvez essa seja a magia de um escritor.

em o zen e a arte da escrita, o autor nos conta de onde vem tudo isso que vemos em seus livros, em nove ensaios escritos em épocas diferentes. “o que você mais ama no mundo?”, bradbury questiona e, com isso, te incentiva a começar a escrever sobre, imediatamente. mas este está longe de ser um manual sobre como escrever prosa. é mais como se fosse os conselhos e alertas de um velho companheiro de guerra.  ou ainda, um relato apaixonado de um apaixonado pela escrita.

as cento e sessenta e seis páginas são como exatamente cento e sessenta e seis injeções de ânimo que todo escritor, ou quem deseja o ser, necessita nos momentos ruins em que a inspiração tira folga ou quando ela insiste em nunca dar as caras.

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Entusiasmo. Prazer. Raramente ouvimos essas palavras! Raramente vemos pessoas vivendo e, no nosso caso, criando com base nelas! Ainda assim, se me perguntarem sobre os itens mais importantes no figurino de um escritor, as coisas que moldam o seu material e o impelem em direção ao caminho que ele deseja percorrer, eu apenas o aconselharia a olhar para o seu entusiasmo, para o seu prazer.
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o zen e a arte da escrita
ray bradbury
editora leya
dois mil e onze
 (“para o coração, todas as boas histórias são um mesmo tipo de história, a história escrita por um homem particular baseada em sua verdade individual” [p. 144] / “vá com as patas de pantera aonde todas as verdades minadas dormem” [p. 151])

azul é a cor mais quente, de julie marot

agridoce. a primeira palavra que pronunciei quando no último quadrinho de azul é a cor mais quente. e eu senti no paladar essa agressividade. por isso, já sabemos desde o primeiro balãozinho de fala que aquelas são palavras póstumas de clémentine, cuja amada lê seus diários escritos dos quinze aos últimos momentos de vida.

julie marot desenha e escreve sobre adolescência, autodescobertas, sexualidade, mas, sobretudo, ela conta uma estória sobre o amor. a estória segue clémentine que, ao conhecer emma, uma estudante de artes plásticas de belos cabelos e olhos azuis, vê sua vida virar ao avesso. os traços da autora resumem toda a delicadeza das personagens desenhadas em tons de cinza, o que contrasta com os cabelos azuis de emma.

diferente do filme (calma, não vamos fazer a ladainha sobre livro e filme!), senti que, no último quadrinho da morte de clémentine, aquela história de amor acabaria ali. a versão de abdellatif kechiche me deu a certeza de que adèle (clémentine na hq), ao cruzar aquela esquina, encontraria outra pessoa, pra qual daria o mesmo amor que a uniu a emma.

ao mesmo tempo em que azul é a cor mais quente é a estória de amor mais linda entre dois seres humanos que se amam além de qualquer parâmetro, é, também, o relato mais dolorido do impacto deste amor nessas duas personagens.

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azul é a cor mais quente
julie marot
editora martins fontes
dois mil e treze
 (“o amor não corresponde à moral que ensinam para a gente” [p. 41] / “talvez seja estúpido esperar que alguém se contente com o que acontece todos os dias, sem tentar buscar algo mais ou se arriscar” [p. 45] / “eu te amo passionalmente... e eu te amo pacificamente... talvez seja isso o amor eterno, essa mistura de paz e fogo” [p. 127]

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