estamos diante de três leituras
postas em três longínquos extremos: num, a crueza do relato de uma vida
desvirtuada que está agora por um fio; noutro, toda paixão de um apaixonado
pela escrita em palavras tão simples e inspiradoras; e por fim, uma história
agridoce sobre o amor.
como sempre, o boas leituras são
breves comentários de leituras sobre as quais sou incapaz de escrever mais do
que dois parágrafos. a cada postagem, notas de três boas leituras (mas não
entenda ‘boas’ como um ponto inferior na escala hierárquica dos adjetivos,
vindo logo abaixo de ótimo. não.).
ovelha: memórias de
um pastor gay, de gustavo magnani
ovelha conta sua história de forma agressiva. e já começa com um inesperado
soco no estômago. “eu nasci veado. amém".
mas o perdoe, “é a falta de experiência”.
basicamente, o livro é sobre um pastor gay que, perto da morte, narra suas
memórias, falando diretamente com deus, sem pudor algum e de forma tão crua. ele
conta seus primeiros relacionamentos com homens, sua relação com a esposa de
mentira, os filhos e, principalmente, sua Mãe (assim, com letra maiúscula. e deus
com minúscula.).
é visível a influência de garcía
márquez e drummond, e magnani não o faz de qualquer forma: ele consegue fazer
bom uso dos dois grandiosos estilos de escrita, conferindo certa singularidade
à sua própria narrativa. o moço faz com que você se sinta sentado ao lado de
ovelha enquanto ele, em sua cama de hospital, lhe confessa tudo, olhando no
fundo dos seus olhos. porque as palavras deste narrador são como o olhar intenso
e perturbador de quem faz uma confissão nunca antes esperada.
ovelha: memórias de um pastor gay é, talvez, a melhor leitura do
ano, especialmente por me ter arrancado do meu lugar de conforto sem sequer
pedir licença. não temo em dizer que todo fanático religioso (os silas malafaias,
os marcos felicianos, os eduardos cunhas...) deveria ser agraciado com uma
cópia desta obra prima pós-moderna.
***
Eu nasci veado. Amém.
Perdão, comecei agressivo demais,
senhor. É a falta de experiência. A mão suada, de tantas punhetas, segura outro
objeto em riste, a caneta; não tão habituada à minha textura, ela teima em
escorregar nas palavras e desviar os pensamentos. Sim, gosto de pau, de pelo,
de suor, de porra. Nasci veado e morri veado. Não, não estou morto. Xô, Brás
Cubas. O coração ainda bate, mas me sinto como se estivesse enterrado. Nasci
enterrado. Nasci evangélico. Não nasci pastor, mas estava escrito, segundo o
bondoso destino de deus...
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ovelha: memórias de um pastor gay
gustavo magnani
geração editorial
dois mil e quinze
✩✩✩✩✩ (“a carreira
política despencaria, seu eleitorado formado exclusivamente por evangélicos em
busca do direito de tirar o direito dos outros seria desintegrado” [p. 172] / “... com tanta tristeza no mundo, com tanta morte, maldade, por que deus se
incomodaria com quem o gay se
envolve? a bíblia prestou serviços sociais; ela deve ser contextualizada em sua
época. suas leis são assassinas! são revoltantes! ‘onde está o deus de amor?’,
pergunta o irmão que lê o antigo testamento” [p. 225])
o zen e a arte da
escrita, de ray bradbury
bradbury é, com quase toda
certeza, um dos autores mais inspiradores dos quais tive o imenso prazer de
conhecer. entre fahrenheit 451 e licor de dente-de-leão existe uma linha
tênue: ambos são duas fontes de inspiração, apesar de serem de gêneros
completamente diferentes; um, sci-fi; outro, infanto-juvenil. e talvez essa
seja a magia de um escritor.
em o zen e a arte da escrita, o autor nos conta de onde vem tudo isso
que vemos em seus livros, em nove ensaios escritos em épocas diferentes. “o que
você mais ama no mundo?”, bradbury questiona e, com isso, te incentiva a
começar a escrever sobre, imediatamente. mas este está longe de ser um manual sobre
como escrever prosa. é mais como se fosse os conselhos e alertas de um velho companheiro
de guerra. ou ainda, um relato
apaixonado de um apaixonado pela escrita.
as cento e sessenta e seis
páginas são como exatamente cento e sessenta e seis injeções de ânimo que todo
escritor, ou quem deseja o ser, necessita nos momentos ruins em que a
inspiração tira folga ou quando ela insiste em nunca dar as caras.
***
Entusiasmo. Prazer. Raramente ouvimos essas palavras! Raramente
vemos pessoas vivendo e, no nosso caso, criando com base nelas! Ainda assim, se
me perguntarem sobre os itens mais importantes no figurino de um escritor, as
coisas que moldam o seu material e o impelem em direção ao caminho que ele
deseja percorrer, eu apenas o aconselharia a olhar para o seu entusiasmo, para
o seu prazer.
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o zen e a arte da escrita
ray bradbury
editora leya
dois mil e onze
✩✩✩✩✩ (“para o coração,
todas as boas histórias são um mesmo tipo de história, a história escrita por
um homem particular baseada em sua verdade individual” [p. 144] / “vá com as
patas de pantera aonde todas as verdades minadas dormem” [p. 151])
azul é a cor mais
quente, de julie marot
agridoce. a primeira palavra que
pronunciei quando no último quadrinho de azul é a cor mais quente. e eu senti no paladar essa agressividade. por isso, já
sabemos desde o primeiro balãozinho de fala que aquelas são palavras póstumas
de clémentine, cuja amada lê seus diários escritos dos quinze aos últimos
momentos de vida.
julie marot desenha e escreve
sobre adolescência, autodescobertas, sexualidade, mas, sobretudo, ela conta uma
estória sobre o amor. a estória segue clémentine que, ao conhecer emma, uma
estudante de artes plásticas de belos cabelos e olhos azuis, vê sua vida virar ao
avesso. os traços da autora resumem toda a delicadeza das personagens
desenhadas em tons de cinza, o que contrasta com os cabelos azuis de emma.
diferente do filme (calma, não
vamos fazer a ladainha sobre livro e filme!), senti que, no último quadrinho da
morte de clémentine, aquela história de amor acabaria ali. a versão de abdellatif kechiche me deu a certeza de que adèle (clémentine na hq), ao
cruzar aquela esquina, encontraria outra pessoa, pra qual daria o mesmo amor que
a uniu a emma.
ao
mesmo tempo em que azul é a cor mais
quente é a estória de amor mais linda entre dois seres humanos que se amam
além de qualquer parâmetro, é, também, o relato mais dolorido do impacto deste
amor nessas duas personagens.
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azul é a cor mais quente
julie marot
editora martins fontes
dois mil e treze
✩✩✩✩✩ (“o amor não
corresponde à moral que ensinam para a gente” [p. 41] / “talvez seja estúpido
esperar que alguém se contente com o que acontece todos os dias, sem tentar
buscar algo mais ou se arriscar” [p. 45] / “eu te amo passionalmente... e eu te
amo pacificamente... talvez seja isso o amor eterno, essa mistura de paz e
fogo” [p. 127]